Importação de softwares: incidência tributária e fiscalização

Publicado por:

Suchodolski

Data: 21.10.2021

Tradicionalmente se diz que a incidência normativa é algo que se produz de forma infalível e automática quando do acontecimento de um evento que venha a se amoldar a determinada previsão legal. Desse modo, para que a norma tributária venha a incidir e produzir os seus efeitos, é necessário que ocorra um evento que esteja adequadamente descrito na norma jurídica, que demonstre capacidade contributiva por parte de quem o pratica, justificando a intromissão do Estado em sua esfera patrimonial.

O fenômeno da economia digital traz grandes desafios nesse aspecto, de sorte que as antigas realidades capturadas pelo legislador tributário não mais correspondem – nem de longe – às atuais formas negociais. Nesse sentido, várias utilidades foram desenvolvidas à margem de um apego estrito figuras já antes utilizadas, seja atreladas ao conceito de serviço como tradicionalmente posto, seja relacionadas ao conceito de mercadoria.

Isso não é diferente em relação às diversas soluções digitais que se amoldam, na medida do razoável, à ideia de software, haja vista a diversidade de produtos ou soluções inteligentes no contexto da economia digital que hoje albergam essa nomenclatura.

Nesse contexto, Supremo Tribunal Federal, em recente decisão paradigmática acerca do tema que envolve a tributação da atividade atrelada à disponibilização de softwares, no bojo do julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n.º 1.945/MT e n.º 5.659/MG, esta última de relatoria do Exmo. Min. Dias Tofolli, firmou seu entendimento no sentido que a competência para dirimir conflitos de competência se encontra na “lei complementar”, conforme preceitua o dispositivo constante do art. 146, inciso I, da Constituição Federal; mas sem aprofundar – talvez da melhor forma – uma análise preliminar no sentido de que, para haver um conflito de competência, antes se deve identificar, ao menos, a pré-existência da competência em si, a fim de se tributar alguém com base na ocorrência de determinado evento.

A par dessa crítica, o fato é que, a partir desse precedente, a disponibilização de software, ao menos em tese, passaria a ser alvo exclusivamente da competência impositiva dos Municípios, e não mais dos Estados, afastando-se a possibilidade de incidência do ICMS, tendo em vista que o legislador complementar já deu seu “veredicto” acerca de quem deve tributar tais atividades, independente do rótulo que lhes atribuam (software de prateleira, disponibilizado em massa, personalizado, por encomenda etc.).

Em caso de importação de software, o tema ganha uma importância e um cuidado ainda maior, tendo em vista que é comum que se deixe de atentar ao fato de que não haja meio como o Fisco levar a efeito a fiscalização tributária nesses casos em particular, de sorte que não haveria como se tomar conhecimento de tais eventos tributáveis e nem se fazerem presentes as condições necessárias para lançar e cobrar o imposto eventualmente relacionado a tais atividades.

Mais que isso. Tal impraticabilidade de fiscalização no âmbito municipal, tendo em vista o potencial de gerar uma generalizada inobservância da norma jurídica, seja por contribuintes, seja por autoridades e juízes, poderia conduzir a uma completa perda de eficácia normativa. E isso, de alguma forma, não poderia influenciar na própria validade da norma de tributação, no contexto de sua existência no sistema jurídico?

Antes de responder a essa pergunta, interessante perquirir acerca da possibilidade de um determinado Município vir a cobrar ISS sobre a atividade de importação de software, mesmo que genericamente seja vista como uma espécie de sua disponibilização.

Assim, no âmbito municipal, notadamente no que se refere aos softwares ofertados a um público consumidor indefinido, via download ou disponibilizados em nuvem, seria extremamente difícil, para não se dizer impossível, a concretização de qualquer tipo de fiscalização ou cobrança do ISS nesse sentido.  

Como bem poutou Schubert de Farias Machado, “Na verdade, pelos meios atualmente disponíveis não há como controlar o movimento das utilidades digitais.”[1] Isso faz com que, na prática, haja uma consequente ineficácia generalizada da norma, com sua decorrente inobservância, seja por parte de quem a ela está sujeito, seja por quem detém a competência para a sua aplicação.

Ocorre que a ineficácia de uma determina norma jurídica gera, como decorrência lógica, o questionamento quanto à manutenção de sua validade dentro do sistema do direito posto, já que não há como assegurar, por vias do Direito, que ela venha a ser cumprida por qualquer sujeito que, a priori, esteja em relação a ela formalmente vinculado. Essas são as lições de Hans Kelsen:

“Uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma norma que – como costuma dizer-se – não é eficaz em uma certa medida, não será considerada como norma válida (vigente). Um mínimo de eficácia (como sói dizer-se) é a condição de sua vigência. Porém, uma norma jurídica deixará de ser considerada válida quando permanece duradouramente ineficaz.”[2]

Em outras palavras, o teor pragmático do Direito, nesse sentido, gera repercussões no caráter formal da norma jurídica, comprometendo a própria validade da norma de tributação. 

Ademais disso, importante frisar que o próprio contribuinte se vê em situações muitas vezes desconfortáveis, principalmente quando tem de solucionar questões práticas no seu dia-a-dia, por exemplo, atreladas ao cumprimento de obrigações acessórias, que não estão definidas ou devidamente disciplinadas em qualquer enunciado normativo. Em outras palavras, se o Fisco não sabe sequer como fiscalizar essas atividades, como exigir, por outro viés, que o contribuinte esteja munido das informações e critérios necessários para o seu devido cumprimento? Isso, em verdade, se torna algo inexequível para ambas as partes.

Entende-se, por esses e outros motivos, em que pese o mais recente entendimento do STF, que a cobrança do ISS potencialmente incidente sobre a importação de softwares se vê, na grande maioria das situações concretas, como algo impraticável ou, até mesmo, inconstitucional.


[1] MACHADO, Schubert de Farias. Tributação e novas tecnologias. In.: Tributação e novas tecnologias (coord. Hugo de Brito Machado), p. 331.  

[2] KELSEN, Hans. O problema da justiça – Introdução de Mário G. Losano, p. XXXI e XXXII.  p. 12.

Foto de luis gomes no Pexels

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