O Trust e sua tributação.
Publicado por:
Suchodolski
O Trust tem origem remota no Direito Inglês, estruturado em conformidade com o que hoje denominamos de Common Law, datando o seu surgimento ainda da Idade Média, época em que era conhecido pelo termo “use”, este havendo sido introduzido na Inglaterra após a conquista normanda ocorrida no ano de 1066.
Nessa situação, as terras pertencentes à nobreza local foram usurpadas pelo governante Guilherme I, reconhecendo-as em forma daquilo que se intitulou por tenures, no bojo do sistema feudal[1].
Com a evolução histórica do Trust, sua utilização foi repassada dos ingleses para os norte-americanos, de modo que em quase todo o território estadunidense hoje é prevista, direta ou indiretamente, a referida figura negocial, sendo útil em diversas situações, que se fundamentam a partir de fenômenos tanto inter vivos como causa mortis.
Assim, segundo Verônica Scriptore Freire e Almeida, o Trust pode ser definido como a “(…) relação jurídica de origem anglo-saxônica que permite a uma pessoa (settlor), proprietária de bens ou direitos, passar a propriedade dos seus bens e direitos, em Trust, para uma outra pessoa (trustee) administrá-los.”[2] Por último, existe a figura do beneficiary (beneficiário), que será detentor do equitable title.
Façamos, com base nisso, um breve resumo de cada uma dessas figuras que o compõem.
No que diz respeito à figura do settlor (ou grantor), essa figura representa o fundador ou instituidor do Trust, assim como o proprietário inicial dos bens e direitos a ele destinados, devendo ser detentor de capacidade e legitimidade para manifestar e declarar a sua vontade no sentido da constituição da espécie jurídica do Trust.
Além disso, o settlor também possui a faculdade de estabelecer no trust instrument a revogabilidade ou irrevogabilidade do próprio Trust, o que pode acarretar impactos tributários. Caso seja revogável, o settlor poderá revogar e finalizar o Trust, tendo o trust property de volta para si. Na situação de irrevogabilidade, assinado o trust instrument, ele não pode mais ser terminado pelo settlor. Em outras palavras, ‘o instituidor pode se desvincular do patrimônio se ele for irrevogável e sua gestão couber discricionariamente ao trustee’[3].
Depois de ocorrida a transferência do patrimônio no contexto do Trust, o trustee deverá administrar o patrimônio que lhe foi atribuído de forma independente, possuindo o que se denomina de legal title, com a devida discricionariedade de como deve exercer e empreender essa administração, desde que venha a atuar em conformidade com as suas obrigações pessoais assumidas frente ao seu título de propriedade.
Assim, os poderes outorgados ao trustee podem ser classificados como expressos ou, até mesmo, implícitos, a depender de sua expressa referência, ou não, no denominado trust instrument, delineando todas as obrigações oponíveis ao trustee no contexto da detenção do seu “legal title”.
Assim, geralmente decorre do poder de administração de bens e direitos o (i) dever de prestação de contas, (ii) dever de não-delegação, (iii) dever de lealdade e de informação, (iv) dever de imparcialidade[4], dentre diversos outros, o que dependerá de cada relação-jurídica formatada sob o manto desse instituto, sendo o trustee responsável por eventuais danos causados aos beneficiários quando proceder com negligência ou imprudência na administração dos bens e direitos constituídos em Trust.
Logicamente, e em decorrência dos aspectos já pontuados, no próprio instrumento contratual (trust instrument), poderá o settlor acordar se haverá e como deverá ocorrer a remuneração do trustee, em consequência de seus préstimos relativos à administração do patrimônio sob sua responsabilidade.
Em que pese a transferência do patrimônio do settlor para o trustee se dê a título gratuito (não oneroso), isto é, de forma graciosa, entendemos – diferentemente de Marco Aurélio Greco[5] – pela ausência de animus donandi, não cabendo confundi-la com a doação, isso porque a doação envolve uma completa e definitiva transferência do legal title, com redução do patrimônio do doador para fins de incremento do patrimônio do donatário[6], o que não ocorre no caso em apreço, já que o intuito não seria incrementar o patrimônio do trustee.
Já o beneficiary (beneficiário) corresponde, por sua vez, à figura que será detentora do equitable title, podendo ser o próprio settlor ou outrem contratualmente designado, como ocorre, por exemplo, com o cônjuge ou com os filhos herdeiros patrimoniais do settlor (v.g., Testamentary trust).
Desse modo, os benefícios a serem revertidos em prol do beneficiary podem representar tanto o próprio patrimônio em si considerado, como igualmente aquilo que decorre desse mesmo patrimônio (dividendos, juros, royalties, aluguéis, capital gains etc.).
A par dessas figuras, pode coexistir ainda um protector (protetor), cuja regular função pode configurar poder de veto de decisões tomadas por parte do trustee ou podendo-lhe substituir em determinadas circunstâncias.
Importante frisar que não adianta ver o referido instituto, proveniente do Direito anglo-saxônico, à semelhança da constituição de uma pessoa jurídica, como querem inapropriadamente alguns, porque representa algo diverso, que não pode ser interpretado exclusivamente à luz da legislação brasileira.
Exatamente por conta disso, os dispositivos constantes dos artigos 8º e 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) fazem inferir que deve ser aplicada a lei do país em que se constituírem os bens e obrigações contraídas para fins de qualificação jurídica, de forma que o Trust não pode ser desconfigurado em sua essência por parte das autoridades fiscais nacionais, tendo em vista fins eminentemente arrecadatórios.
Nesse sentido, o correto seria falar-se de uma transferência de capital, mas não de uma transferência de renda, haja vista a ausência de algo que decorre do produto do capital ou do trabalho, ou da combinação de ambos, assim como do próprio patrimônio de seu titular. Como bem pontua Ricardo Mariz de Oliveira, ‘(…) o incremento patrimonial que integra a sua base de cálculo deve sempre ser originado de causas das quais participe a própria fonte produtora, que é o patrimônio ou o seu titular’[7].
Isso quer dizer que, quando da instituição de um Trust Testamentary, a reversão dos bens e direitos administrados pelo trustee em favor do beneficiário não pode ser vista como uma transferência de renda, o que se reforça pela inexistência de caráter oneroso a ser imputado à transação.
Supondo que o trustee seja residente no exterior, e o Trust esteja lá constituído, não só no caso de (i) remessa do patrimônio principal, mas também (ii) na remessa dos rendimentos que dele decorrem (v.g., dividendos etc.), entendemos como, ao menos, questionável a incidência do Imposto de Renda sobre tais importâncias quando remetidas ao Brasil, tendo em vista que, mesmo no segundo caso apontado (ii), essas espécies de rendimentos representam antes renda a ser já reconhecida nopaís de residência do trustee. Em França, a título de exemplo, tributa-se o próprio trustee em relação aos rendimentos gerados a partir do Trust, tendo em vista o intitulado ‘princípio da propriedade aparente’.
O fato é que, incidente o tributo lá fora, o rendimento se incorpora ao próprio patrimônio, antes mesmo de ser remetido. Com isso, a adoção de tais premissas levam a crer que os valores remetidos para o Brasil, mesmo que representando originalmente rendimentos passivos do Trust, deveriam ser encarados como capital transferido, e não transferência de renda a partir do exterior.
Por outro lado, em que pese não haver uma efetiva transferência de renda sujeita à tributação, a Receita Federal vem insistindo em ver o referido instituto como veículo proporcionador do fato gerador do Imposto de Renda, por meio de do recebimento de uma renda tributável proveniente do exterior, como se demonstra a partir da Solução de Consulta COSIT nº 41, de 2020, conforme abaixo ementada:
“ASSUNTO: IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA FÍSICA – IRPF RENDIMENTO RECEBIDO DE FONTE NO EXTERIOR. O recebimento de rendimentos oriundos do exterior por residente no País é fato gerador do imposto sobre a renda e sujeita-se à tributação mensal mediante a aplicação da tabela progressiva mensal (carnê-leão) e na Declaração de Ajuste Anual. Dispositivos Legais: Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, art. 43, Lei nº 9.250, de 26 de dezembro de 1995, arts. 7º e 8º, Lei nº 7.713, de 1988, art. 8º, Regulamento do Imposto sobre a Renda (RIR/2018) arts. 118, caput, 119 e 120, aprovado pelo Decreto nº 9.580, de 22 de novembro de 2018, e Instrução Normativa RFB nº 1.500, de 29 de outubro de 2014, arts. 53, inciso II, e 54. ASSUNTO: PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL INEFICÁCIA PARCIAL. É ineficaz a parte da consulta que não se refere à interpretação da legislação tributária e aduaneira federal, relativa aos tributos administrados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB). Dispositivos Legais: Instrução Normativa RFB nº 1.396, de 16 de setembro de 2013, arts. 1º, 3º, § 2º, e 18, incisos I e XIII.”
De forma bastante restritiva e questionável, a Receita Federal vem, na prática, desconfigurando a real estrutura jurídica do Trust, e tributando quaisquer remessas de valores pelo Imposto de Renda nesse sentido, como se tratassem de rendimentos remetidos a partir do exterior para dentro do País, o que vem sendo alvo de questionamento por parte dos contribuintes no Judiciário.
Por último, importante frisar que o Trust equivale ao que se qualifica, no modelo jurídico romano-germânico (civil law), como negócio jurídico fiduciário, tendo em vista que o termo ‘fidúcia’ nada mais representa que ‘confiança’. Caio Mario da Silva Pereira, ao tratar da alienação fiduciária em garantia, lecionou que houve o intuito de se ‘(…) introduzir no direito obrigacional brasileiro a instituição do trust, que o direito inglês criou e que vigora com grandes préstimos assim naquele direito quanto no dos Estados Unidos.’[8].
Importante, também, trazer um pouco do tratamento tributário atribuído pelo legislador pátrio à figura daquilo que se denomina por ‘administrador fiduciário’, como se depreende do texto normativo constante do artigo 26 da Lei nº 12.249/2010, que se passa a transcrever:
‘Art. 26. Sem prejuízo das normas do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica – IRPJ, não são dedutíveis, na determinação do lucro real e da base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, as importâncias pagas, creditadas, entregues, empregadas ou remetidas a qualquer título, direta ou indiretamente, a pessoas físicas ou jurídicas residentes ou constituídas no exterior e submetidas a um tratamento de país ou dependência com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado, na forma dos arts. 24 e 24-A da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, salvo se houver, cumulativamente:
I – a identificação do efetivo beneficiário da entidade no exterior, destinatário dessas importâncias;
II – a comprovação da capacidade operacional da pessoa física ou entidade no exterior de realizar a operação; e
III – a comprovação documental do pagamento do preço respectivo e do recebimento dos bens e direitos ou da utilização de serviço.
§ 1º Para efeito do disposto no inciso I do caput deste artigo, considerar-se-á como efetivo beneficiário a pessoa física ou jurídica não constituída com o único ou principal objetivo de economia tributária que auferir esses valores por sua própria conta e não como agente, administrador fiduciário ou mandatário por conta de terceiro.’
Interpretando o artigo 26 da Lei nº 12.249, de 2010, Marco Aurélio Greco pondera no sentido de que ‘se aquele que receber o pagamento for um “administrador fiduciário” este pagamento será indedutível pela pessoa jurídica brasileira que o fizer’[9], de forma que entende que o termo ‘casa como uma luva à figura do trust’[10].
Em que pese haver outros requisitos que devem ser cumpridos para que se configure a previsão de não dedutibilidade de tais despesas incorridas para efeitos de IRPJ e CSLL no caso concreto, como se depreende do caput e incisos do artigo 26, deve-se ter em conta que a interpretação produzida por Marco Aurélio Greco não deixa de ter um teor concreto de sentido, notadamente quando implica em situações nas quais se interpõem reais dificuldades na identificação do efetivo beneficiário da entidade presente no exterior.
No que diz respeito ao ITCMD, esse imposto só poderia incidir nas situações em que não fosse cabível a incidência do Imposto de Renda, devendo preencher outros pré-requisitos adicionais para a configuração de seu fato gerador, além do próprio caráter não oneroso da transferência patrimonial.
Como se vê, enxergar o fenômeno exclusivamente pelas famigeradas figuras e institutos jurídicos do civil law não seria o melhor caminho para uma interpretação tributária do Trust, à luz das mais coerentes diretrizes hermenêuticas disponíveis em nosso ordenamento jurídico.
Por fim, muitas outras questões jurídicas podem ser suscitadas acerca do Trust e sua forma de tributação no Brasil, de modo que sempre se torna aconselhável que as pessoas que procuram planejamentos sucessórios e/ou tributários consultem previamente profissionais habilitados para suportar eventual tomada de decisão no sentido de sua constituição.
[1] BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Coimbra: Edições 70, 2009, p. 197.
[2] FREIRE E ALMEIDA, Verônica Scriptore. A tributação dos Trusts. Coimbra: Almedina, 2009, P. 29.
[3] GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 4ª edição. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 453.
[4] HAYTON, D. J.. The Law of Trusts. London: Sweet and Maxwell, 1998, p. 136.
[5] Idem, p. 453.
[6] FREIRE E ALMEIDA, Verônica Scriptore. A tributação dos Trusts. Coimbra: Almedina, 2009, P. 258.
[7] OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 145.
[8] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. Volume III. Contratos. Rio de Janeiro: Forense/GEN, 2010, p. 387.
[9] GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 4ª edição. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 454.
[10] Idem, p. 454.
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